Cotidiano | 27/08/2011 | 20:54
Um memorial à resistência no ex-Deops
Lucas Lemos - lucas.lemos@canalicara.com
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O prédio é o mesmo. Mas os ambientes já não possuem mais a mesma atmosfera. O Departamento de Ordem Política e Social do Estado de São Paulo (Deops/SP) virou coisa do passado. Virou memorial. No primeiro andar, algumas das instalações utilizadas em tempos de repressão à ditadura foram remontadas para lembrar a resistência. Não passam de reproduções. É que as detenções ocorriam originalmente no subsolo. Ainda assim, possibilita uma viagem que meche com o visitante.
Livros, baralhos, objetos diversos, documentos e publicações da época. "Lembrar é resistir", destaca a frase que está em uma das paredes. As palavras são acompanhadas de uma grade. O símbolo estampado por diferentes vezes deixa claro que o local era uma prisão. Ali esteve por exemplo Derlei Catarina De Luca. Num corredor que tinha formato de "L", ficou presa no canto, lugar de visão privilegiada. Isto se comparada com as demais celas. Por que estar ali não era privilégio de forma alguma.
A içarense chegou a dividir o espaço com oito pessoas. Mas noutros cubículos a situação era pior ainda. Quase 20 presos chegavam a ser amontoados. "Não dava nem pra deitar no chão. Tinha de dormir sentado. Ou por turno", relembra sobre o período que passou entre 6 de janeiro e a semana da páscoa de 1970. "Eles mudaram um pouco o visual. Construíram uma parede. Na minha cela a luz ficava acesa nas 24 horas do dia”, remonta o cenário.
Ainda segundo Derlei, tinha uma janela pequena, com grade, no alto da parede. Nela corria água. Assim que se podia saber quando estava chovendo. “Na porta que dava para o corredor tinha aquela janelinha minúscula toda gradeada, própria dos presídios", complementa. Diferentes histórias de vida foram marcadas pelo temido departamento. Era ali que ocorriam as torturas.
Dentre os componentes da resistência que saíram vivos do Deops, alguns relatos constam no memorial. Lá no fundo do corredor há uma cela, uma caixa de madeira, um vaso e uma flor. A iluminação é fraca. Bancos dispostos nas paredes são um convite ao visitante. Acima deles há fones de ouvidos pendurados para que se possa escutar relatos. As falas se misturam a sons de grade batendo e portas se fechando (ou abrindo). Lacrimejar se torna natural.
Cada cela remontada tem um diferente objetivo. Uma delas exibe projeções. Noutra há duas camas, além de inscrições nas paredes. As marcas tentam contextualizar o visitante ao período de ditadura que se coloca sob reflexão. Os materiais multimídias auxiliam no retorno ao passado. As telas são navegáveis. Há um arquivo digital a ser vasculhado em monitores sensíveis ao toque, um acervo virtual para ser acessado em computadores e um arquivo físico com fichas plastificadas.
O Deops como foi conhecido por uma série de presos teve a extinção decretada em 1983. Depois disso o prédio no Largo General Osório foi utilizado pela Delegacia da Defesa do Consumidor. Em 1997, foi transferido para a Secretaria de Estado da Cultura e no ano de 1999 acabou tombado. Pela importância histórica que possui, as propostas para o edifício foram diversas. Em 2004 foi repassado para a Estação Pinacoteca para que em 24 de janeiro de 2009 pudesse ser inaugurado o memorial. O mesmo prédio ainda abriga exposições temporárias.
RELATO DE DERLEI CATARINA DE LUCA NO LIVRO “NO CORPO E NA ALMA” - A cela tem dois metros de largura por três de comprimento. A gente se esbarra se quer caminhar. Revezemo-nos no único Catre existente. A cada três dias uma dorme na cama, nos outros dias, dorme no chão. No fundão, nome dado à parte do subterrâneo onde estamos, faz frio, apesar de verão. É úmido, sem ventilação. Se nos entregarmos ao tédio, apodrecemos. O chuveiro fica perto da carceragem. Serve para todos. Somos quase duzentos. Dá choque. Não me atrevo a ligar. Um dos presos conserta e podemos tomar banho quente.
Dr Davi, como médico, tem mais liberdade. Uma vez por dia sai da cela distribuindo comprimidos, fazendo massagens nas costas, tornozelos, vértebras e articulações dos mais necessitados. Apenas "Leão", um dos carcereiros, não permite tais liberdades. Demora a acender nossos cigarros, reclama quando tem de abrir uma cela, não deixa tomar banho, chama-nos de terroristas.