Cotidiano | 07/05/2011 | 11:10
Onde fica o paraíso?
Derlei Catarina De Luca - derlei.deluca@canalicara.com
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O primeiro a ir foi o filho mais velho. Incentivado pela mãe, abandonou o curso de Agronomia e se aventurou aos States. Vários amigos e conhecidos tinham ido e os relatos eram entusiasmantes. Lá havia emprego fácil e enriquecimento rápido. Impossível de conseguir na Pátria Amada. Alguns anos depois foram a mulher e os filhos menores. A esposa era a maior entusiasta. Queria mudar de vida e de cidade. Adorava os EUA, as luzes, o plástico, o chocolate açucarado, o frio, o branco da neve.
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Por fim, ele decidiu ir por um tempo, conhecer, conseguir dinheiro e abandonar esta terra cheia de pobre, corrupção e dificuldade. Quem sabe, a mulher não tinha razão e lá as coisas seriam melhores? Preparou o passaporte, colocou o emblema do Lions no terno azul marinho e foi até o consulado pedir visto. Sem problemas. Afinal, loiros, de olhos azuis, classe média, não é o tipo de pessoa rejeitada pelos EUA.
Encaminhou-se a uma agência de turismo e pediu: “Quero a passagem mais barata que existir; para os EUA”. E a mossa respondeu: “Temos da LAP”. “O que é a LAP?”. “Linhas Aéreas Paraguaias; faz vôo direto São Paulo-Miami”. “Me dá três passagens: para mim, meu primo e minha filha”.
Na tarde anterior ao embarque, pegaram o ônibus da Pluma na rodoviária de Criciúma cheios de malas e bagagens em direção a São Paulo. Trocara seu dinheiro por dólar e levava cruzeiro suficiente para táxi e almoço. O avião sairia às 14h de Guarulhos. O ônibus chegaria em São Paulo às 6h. Era tempo suficiente, quem sabe até, para visitar o cunhado que morava em Pinheiros. Cheio de esperança e expectativa embarcou.
Próximo a Curitiba o ônibus parou. Vários ônibus aguardavam enfileirados na BR-101. Virou-se para o primo e disse: “É por isso que estamos indo para os EUA, este país não anda”. Esperaram, esperaram, dormiram, afinal era madrugada. Quase ao amanhecer foram informados pela Policia Rodoviária que os ônibus com destino a São Paulo teriam de desviar por outra estrada. Tombara um caminhão com produto químico altamente tóxico, na BR. O produto estava vazando e se espalhava pelo terreno e pelo ar.
Os motoristas ligaram os ônibus, os carros particulares prepararam-se para partir. Ele, motorista experiente, perguntou como seria o trajeto novo a percorrer e foi informado que teriam 120km a mais de percurso. Chegou-se ao chofer do ônibus, comentou o aumento do trajeto. “Você conhece a estrada?”. “Não, mas todos os ônibus irão pela mesma estrada, não tem errada”. “É conveniente abastecer o tanque, pois vamos fazer 120 km a mais”. “Que nada. Este ‘cavalo’ tem um tanque enorme, temos gasolina. Vai por mim”, respondeu por último o motorista.
Cumprido o dever que a consciência lhe impunha, sem nada mais que fazer, sentou, pegou um cobertorzinho para espantar o frio da manhã que nascia, virou para a filha e disse: “Acho que não vai dar para visitar o tio Arthur. Do aeroporto a gente telefona”. Acordou sentindo o ônibus pigarreando como bêbado, quase parando e o motorista berrando: “Cadê o boca maldita aí? Aquele que falou em abastecer?”.
Assustado viu que já era perto do meio dia e ainda faltavam 50 quilômetros de estrada até chegar a São Paulo. O ônibus parara por falta de combustível. Procuraram um posto e nada. Desembarcaram com malas e bagagens e se puseram na estrada pedindo carona. Não eram os únicos. Se tivera alguma dúvida em ir para os EUA e deixar esta terra neste momento, a dúvida se fora. Não havia uma única autoridade para orientar ou proteger as pessoas.
Meia hora depois pára um ônibus da Itapemirim. O motorista recolhe os passageiros da Pluma e ele nervoso expõe seu problema ao motorista. Pede que ele acelere, pois temia perder o avião. Faltavam 55 minutos para seu avião partir. Ofereceu todo o dinheiro que tinha ao motorista se chegasse a São Paulo a tempo de pegar o avião e os levasse ao aeroporto. O motorista concordou. A garagem onde devia deixar o ônibus era perto de Guarulhos. Que mal havia em levá-los ao aeroporto? Deu um pau danado e levou-os até lá. Já estava fora de horário. A polícia não poderia multá-lo por excesso de velocidade. E não custava dar uma mão para esses patrícios que iam aventurar em outro país.
O ônibus chegou a rodoviária do Tietê, os passageiros desembarcaram e eles permaneceram agachados, escondidos entre os bancos para não serem vistos pela fiscalização, conforme orientação do motorista. Correndo esbaforidos, com quinze minutos de atraso; desesperados, chegaram ao balcão de embarque. Foram informados, por uma secretária indolente, que a LAP estava com o vôo atrasado. Só sairia as 18h. Nem acreditaram. Sentaram para respirar. Passado o susto e o aperto sentiram a fome chegar. Estavam sem comer desde a noite anterior.
Tinha dado todo seu dinheiro em cruzeiro ao motorista. E não podiam passar o dia todo sem comer. Então se deu conta que estavam na ala internacional. Ali mesmo, no Brasil, já começaram a comer em dólar. Compraram revistas e esperaram até quando o avião taxiou e embarcaram. Sem saber se estava acordado ou sonhando inspecionou o avião, sem acreditar. Havia fissuras na carcaça, as poltronas estavam emendadas com cordão e arame, ferrugem aparecia no teto, o bagageiro não fechava. Era a primeira viagem aérea da filha. Ela imaginara um avião bonito e entrara numa verdadeira lata velha.
“Será que isto voa?” pensou ele, ficando quieto para não alarmar a filha. Mas o avião, mesmo sacolejando, subiu. Deu graças a Deus. O vôo se dirigia a Brasília para buscar passageiros. “Brasília? Mas não era vôo direto?”, comentou com o primo. Fizeram uma parada rápida na Capital Federal da República e seguiram para Assunção. “Assunção?” perguntou o primo. “Tem lógica. A Companhia é paraguaia. Mas porque não saiu de lá?”. “Será que não entramos no avião errado?”.
Em Assunção tiveram permissão de desembarcar, pois o avião demoraria 4h. Deviam permanecer na ala internacional. O vôo parecia estar sendo monitorado por militares paraguaios. Ele observava atentamente e desconfiava de tudo o que se passava ao redor. Viu dois norte-americanos falando inglês segurando duas crianças entre dois e três anos. As crianças não paravam de chorar. “Será que são os pais? Porque choram tanto?”. “Podem ser que estejam com fome, disse a filha, acostumada a cuidar dos irmãos menores e acalmá-los com balas, bolos e frutas”.
Na hora do embarque os gringos apresentaram os passaportes colocando embaixo notas de dólares recebidos pelos militares com a maior tranqüilidade. Ele ficou mais desconfiado ainda e passou a observar atentamente cada movimento dos norte-americanos. O avião taxiou e se preparou para levantar vôo. Ele tinha vontade de fazer algumas perguntas para a aeromoça. Ela estava ocupada tentando acomodar os bagageiros que não fechavam. Decidiu acalmar-se. Era mais de meia noite. O dia fora cansativo. O avião estava por fim levantando vôo. As crianças não paravam de chorar e não havia como se acalmar.
De repente, o choque e a barulheira infernal. Na hora de levantar vôo o avião bateu com a rabeira na pista. Os passageiros correram para as janelinhas para ver se o avião não se partira. Que susto! Quando o avião estabilizou, desapertaram os cintos e começaram a servir a refeição. Pelo menos era brasileira, feita em São Paulo. Passava da meia noite e depois de lanchar tentou dormir. O dia tinha sido cansativo e emocionante. Agora era enfrentar nove horas de vôo. Tentou dormir, mas as crianças não paravam de chorar.
A chegada em Miami foi um pesadelo. As crianças choravam e não queiram descer. Ele teve vontade de se meter e alertar os policiais. Poderia se meter numa briga. Tinha certeza que as crianças eram sequestradas ou compradas. Com que fins; não sabia dizer. Se fosse no Brasil teria se metido, aqui não conhecia ninguém, nem falava inglês. Aliás, não entendia nada do que falavam os guardas aduaneiros. Ainda estava no aeroporto e apesar do visto, não sabia o que poderia acontecer.
Tudo, porém, foi normal. O emblema do Lions na lapela era uma garantia. Nem sequer abriram as malas. Se abrissem, morreria de vergonha: tinha farinha de mandioca, queijo serrano e salame italiano. Coisas pedidas pela mulher que já estava a seis meses em Boston. No aeroporto, sua família o esperava e sentiu-se por fim tranquilo. Beijos e abraços e graças a Deus: ouvir português. Foram para outra ala tomar um vôo doméstico. No mesmo avião iam os nortes americanos com as crianças que choravam sem parar. Desceram em Carolina do Sul e eles seguiram para Boston.
Apesar de ser teoricamente outono o frio era intenso. Ele saído do calor dos trópicos quase congela na primeira semana. Exímio chofer no Brasil saiu a procura de emprego de motorista. Conseguiu emprego num restaurante industrial de judeus. Suas tarefas eram ajudar na cozinha. Eram bem específicas. Todo o dia, bem cedo, enchia o caminhão de comida pré-cozida para entregar nos demais restaurantes da rede. Duas vezes por semana devia ir ao aeroporto buscar caixas de salsinha e cebolinha verdes e frescas vindas do Brasil.
Passou a enxergar a salsinha e a cebolinha verde brasileira com outros olhos. Era um fetiche. Adorava recolher os engradados de cheiro verde e se orgulhava que fossem brasileiras. Gostou da primeira semana. Era novidade, a comida era boa, não entendia o que os gringos falavam, mas também ninguém exigia dele mais do que estava disposto a dar. Veio a escala de Natal. Teria de trabalhar no dia 24 à noite. Dia 25 de dezembro, Natal, também. Chegando ao restaurante pediu ao chefe para que o liberasse antes do meio dia para almoçar com a família e os amigos.
O chefe disse que não tinha problema. Tinha apenas de fazer uma entrega de comida a cem milhas, em casa de uns israelitas. Depois podia seguir direto para casa no próprio caminhão. Junto um ajudante mexicano que falava inglês. No trajeto caiu uma nevasca e ficaram parados durante três horas, próximos a um posto de gasolina esperando a neve parar. A espera parecia eterna. Pensou que ia virar picolé dentro do caminhão. “O que é que estou fazendo aqui? Neste frio, neste país? Passando todo este aperto? Trabalho eu já passava no Brasil”.
Eram 14h30 quando a estrada foi liberada e ele pode enfim fazer a entrega. Perdera o almoço com a família. Já na noite anterior não tinham passado juntos na ceia de Natal. Nunca, nem nos piores momentos no Brasil, deixara passar um Natal sem festa. Mesmo com apertos financeiros reunia os filhos, parentes e amigos e faziam um Natal. Desanimado fez a entrega. Não tinha sequer uma moeda para telefonar a esposa e dizer que estava preso na neve. O filho preocupado fora até ao restaurante a sua procura. Esperou o pai chegar e foram para casa.
A família, esposa, filhos, nora e netos sentaram para o almoço de Natal. Eram 20h. A mulher não deixara ninguém comer antes de ele chegar. Naquela manhã de Natal entendeu que qualquer país tem suas próprias dificuldades. Nunca amou tanto o Brasil como nos EUA. Nunca amou tanto o Brasil como agora. “Não amo a corrupção nem desculpo a pobreza. Esse país precisa melhorar. Mas nada supera este ventinho que vem do mar”, diz Heitor Borges, na varanda de sua casa na Praia do Rincão, sentindo a brisa marinha acariciando seu rosto.