Cotidiano | 28/05/2012 | 10:14
“Os adolescentes são cruéis”, relata Derlei
Lucas Lemos - lucas.lemos@canalicara.com
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Aos 65 anos, Derlei Catarina De Luca é parte ativa na história de Içara. Na cidade ela ficou até 1966. Foi quando decidiu estudar em Florianópolis. Em 1980 retornou. Já em 1985 foi para Criciúma. Chegou a iniciar duas faculdades. Mas não terminou os cursos de Pedagogia pela UFSC e nem de História pela Universidade de Oriente em Cuba.
Além de atuar como professora na Apae de Içara entre 1982 e 2004, Derlei também já escreveu cinco livros. Ela soma os trabalhos “Os Jasmins do Jardim”, “No Corpo e na Alma”, “À Sombra da Figueira”, “História e Geografia de Içara” e também “Além da lenda”. Este último título foi reproduzido no Portal Canal Içara com publicações semanais dos contos do passado içarense. Derlei também fez parte de 10 obras da Academia de Letras de Criciúma.
Solteira e mãe de um filho que nasceu durante a clandestinidade na ditadura. Derlei sofreu com o regime militar. Guarda marcas no corpo e ainda tem sequelas. No tempo de estudante, fez parte da resistência. E por conhecer tão de perto este movimento é frequentemente convidada por escolas e imprensa para relatar pessoalmente sobre esta mobilização.
Apesar de tantas atividades, se considera originalmente professora. Afinal, já atuou em diferentes salas de aula. Em Içara a lista inclui o Colégio Cristo Rei e a Escola Reunida do Barracão. Em Criciúma teve passagem pelo Colégio Padrão, Dimensão, São Bento e Marista. Já em Cuba ainda lecionou na Escola de Educadoras de Jardim de Infância em Santiago, além da Escola de Idiomas Abraham Lincolin em Havana. Atualmente é servidora da Assembleia Legislativa de Santa Catarina. Passa então as semanas na Capital.
Em entrevista ao portal, Derlei foi questionada sobre a história de Içara, a participação da cidade na resistência, além de tratar sobre as obras literárias que já lançou. Ela ainda se manifestou sobre a condenação de torturadores. “É preciso lutar pelas coisas que acreditamos. Elas não surgem ao acaso”, lança como recado aos leitores. Confira na íntegra:
Içara nasceu de Urussanga Velha e a partir da emancipação do Rincão perderá o vínculo administrativo com a comunidade. Como pesquisadora da história de Içara, isto mudará a contagem dos anos de colonização da cidade?
Em tese muda, na prática não. Içara começa a ser colonizada a partir dos arredores: Urussanga Velha, com gentes vindas de Laguna e fugitivos. Depois Primeira, Segunda, Terceira Linha, com os imigrantes italianos. Como povoado organizado pode ser considerada a mesma data de Criciúma, em 1880. Os imigrantes que foram para a Primeira e Segunda Linha vieram junto com os que ficaram no Centro de Criciúma.
Enquanto os municípios da região comemoram o tempo de colonização, Içara festeja apenas a emancipação administrativa. Qual dos períodos é mais significativo?
É que Criciúma tem uma certidão de nascimento, assinada e datada. Içara não tem, justamente porque foi surgindo aos poucos, na beira da praia, com náufragos e fugitivos. Para Içara foi determinante a emancipação.
Se fosse para contar o período de colonização de Içara, qual o marco a cidade poderia utilizar?
Seria interessante pesquisar A Guerra do Paraguai e quando foi instalado o telefone em Urussanga Velha através do cabo submarino que ligava as tropas pelo litoral até do Rio de Janeiro até o front.
Em relação à escritora Derlei, entre os seus livros, existe algum que tenha um carinho especial?
Além da lenda, porque são minhas mais caras memórias da infância em Içara.
Há mais alguma publicação no forno?
Sim, um livro ainda sem nome.
No livro "No corpo e na alma" está descrito uma série de torturas que sofreste no tempo de ditadura no Brasil. Até que ponto as marcas foram apenas físicas? Ficaram sequelas comportamentais?
As marcas são principalmente na alma, no espírito. É difícil, quase impossível livrar-se delas. É algo que vem a mente a cada momento. As marcas do corpo se apagam, as da alma, não. Comportamento: um pouco assustada, dormir de luz acesa. Como a mente não desliga, fico um pouco aérea, sem enxergar coisas que estão do meu lado.
Além da publicação em que trata da ditadura militar no Brasil, é comum a sua participação em palestras sobre o assunto. Não lhe incomoda remexer tanto o passado?
Segundo a psiquiatra é melhor. Assim vou falando e trabalhando as questões na mente. No início me machucava muito e eu chorava. A partir das palestras, nas escolas, vou conseguindo falar. Os adolescentes são cruéis, querem saber da tortura. Prefiro falar da nossa luta em busca dos desaparecidos e da Comissão da Verdade.
Como surgiu o seu ingresso na luta contra a ditadura?
A partir do Concilio Vaticano II. A igreja promoveu uma grande abertura e criou grupos de Ação Católica, unindo a juventude em Juventude Estudantil Católica, Juventude Agrária Católica, Juventude Operária Católica, Juventude Universitária Católica. Dos grupos de Ação católica um grande número formou a Ação Popular, de lutou contra a ditadura.
Içara foi inclusa em algum nível nesta resistência?
Sim. Tinha um sindicato dos mineiros combativo e um grupo de agricultores organizados para a questão da compra de insumos agrícolas, que era dominada por uma multinacional. Os jornais Libertação da AP [Ação Popular] eram distribuídos nas minas.
Se fosse necessário passaria tudo de novo? Ou mudaria algo?
Faria tudo de novo... Hoje tenho mais fundamentos teóricos que fui aprendendo com o tempo.
A garra dos jovens registrada daquela época resiste ainda? Ou os jovens de agora estão acomodados?
O momento histórico é outro. Naquele tempo tínhamos a vontade de salvar o mundo. Hoje os jovens querem se dar bem. A vida é mais fácil agora. Fico preocupada, quando vejo jovens atuando apenas pela Internet, sem levantar-se da cadeira. Deixa-me triste.
Sobre a liberdade de expressão, como se pode detectar os excessos do Estado para silenciar uma nação?
De várias maneiras: Os jornais que noticiassem algo contra a vontade dos governantes eram sufocados, sem anúncios oficiais e as empresas que tivessem negócios com o governo também não poderiam anunciar neles. Havia censura direta nas redações dos jornais e rádios. Houve prisão de jornalistas e vários foram assassinados, entre eles, o catarinense Rui Pfützenreuter.
O antigo Departamento de Ordem Política e Social do Estado de São Paulo (Deops) virou museu. Já retornaste ao local depois de ter sido transformado no Memorial à Resistência?
Já fui. Fui convidada para a inauguração e foi colocada lá uma placa, onde constam os nomes dos presos no Congresso de Ibiúna, entre eles eu.
Os seus relatos de vida já renderam interesse de cineastas. Como está o processo de produção do filme? Ele deve virar realidade?
Na verdade não sei. Tenho pouco contato com o cineasta e com as pessoas responsáveis pela produção. Dei entrevista e estou esperando.
A Comissão da Verdade foi criada para investigar crimes do passado. Qual a importância deste grupo? Quem participa dele?
A Comissão da Verdade não surgiu por obra do Espírito Santo. O Brasil foi obrigado a criar a Comissão da Verdade e a Lei de Liberdade da Informação. Ambas foram aprovadas por causa da condenação do Brasil na OEA [Organização dos Estados Americanos]. Nisto nós tivemos um papel fundamental porque sustentamos o processo na OEA durante mais de 30 anos contra todos os governos brasileiros que passaram. Participam da comissão José Carlos Dias (advogado e ministro da Justiça no governo FHC), Gilson Dipp (ministro do STJ e do TSE), Rosa Maria Cardoso da Cunha (amiga e ex-advogada de Dilma), Cláudio Fonteles (procurador-geral da República no governo Lula), Maria Rita Kehl (psicanalista próxima ao PT paulistano), José Paulo Cavalcanti Filho (advogado pernambucano) e Paulo Sérgio Pinheiro (presidente de uma comissão da ONU sobre a Síria e secretário de Direitos Humanos sob FHC).
Na sua avaliação, os responsáveis pelas torturas no passado deveriam ser condenados?
Sim, para que nunca mais aconteça. Para que jamais se esqueça.